20 de jul. de 2010

Diálogo 3h23

— O que é essa falha na sua barba?

— É uma falha, ué.

— Mas é muito grande...

— Diga algo que eu não sei.

— Não te incomoda?

— A idéia é que me incomode... É meu principal defeito... Mas isso é bom!

— Como pode ser bom?

— Faz com que eu não repare no resto, nos outros defeitos... Não me sinto tão feio.

— Você é bonito!

— Não...

— Me dá um cigarro.

— Você não devia fumar.

— Olha quem fala...

— Eu fumo pra esquecer essa falha na minha barba. Esse defeito irremediável e inexplicável.

— Mas você é tão bonito.

— Eu estou ficando velho, me sinto com mais de trinta anos.

— Você tem trinta e dois, não é?

— É, mas eu sempre me sinto uns cinco anos mais novo.

— Que ridículo isso.

— Você poderia parar de me encher um pouco.

— Você poderia me beijar logo...

— Você não deveria querer me beijar.

— E você deveria querer fazer amor comigo agora.

— Ah, coloque um disco pra tocar e cale um pouco a boca.

— Você não quer trepar?

— Você não deveria querer trepar comigo.

— Mas eu quero.

— Não quer, eu apenas estou escrevendo isso. É uma vontade minha que eu coloco no papel, mas você não quer.

— Então está dando certo, pois estou muito excitada e com vontade de fumar.

— Não, eu que quero que você fume e tire a roupa para mim, você nunca teve nem nunca vai ter vontade de dar pra mim.

— Mas eu estou aqui, não estou?

— Não, claro que não.

— Onde eu estou?

— Está sentada num banco de praça, lendo uma revista.

— E você?

— Eu estou aqui, no meu escritório, passando a mão na falha da minha barba.

— Você me conhece?

— Nos já nos vimos algumas vezes, sempre na hora do almoço.

— Naquele restaurante na esquina da Inácio Pereira da Rocha com uma rua que não lembro o nome.

— É, eu sempre almoço lá.

— Eu sei.

— E depois vou até a pracinha em frente à Fnac...

— E senta num daqueles bancos, pra ler alguma coisa. Pode ser um livro, uma revista... É onde está agora.

— É, como você sabe tudo isso.

— Eu te vejo no restaurante e às vezes na pracinha. Às vezes nos dois lugares, eu ando sempre por ali.

— Você me segue?

— Não, quer dizer, às vezes você me guia durante a digestão...

— Eu acho que já te vi, não sei onde...

— É, nunca reparou de verdade em mim...

— Mas você vai me comer ou não?

— Ainda não sei, não é assim que se decide o desfecho de uma história...

— Mas você me deixou com tesão. E eu acho essa falha na barba a coisa mais sexy que já vi.

— Que tal se eu te comer na última página?

— Quantas faltam?

— Umas cem no mínimo.

— Que merda! O que tem antes disso?

— Enrolação... Um pouco de suspense, crises existências e tal...

— E você vai me comer só na última página?

— É uma questão de narrativa isso. Nós ainda não nos conhecemos. Um dia eu vou trombar em você ou puxar papo no banco da praça.

— E por que não faz isso logo?

— Sei lá, seria sem graça. Não acha que merecemos uma história mais complexa?

— Se o sexo for bom, o que importa a história?

— Sei lá... Eu acho que...

— Você acha coisas de mais.

— É...

— Eu vou te esperar amanhã, na praça, OK?

— E o que eu faço com todo o resto? Já escrevi muita coisa até chegar nesse ponto? O tesão que eu escrevi e sua vontade de fumar estão aqui no texto.

— Então me coma! Você criou esse tesão, só falta me foder.

— Eu nem sei seu nome...

— Então invente logo algum nome pra mim. Que tal Raquel?

— Você tem cara de Joana, acho.

— Ótimo.

— Estou obcecado por você.

— Ótimo.

— Vou jogar tudo fora...

— Ótimo.

— Que mania é essa agora?

— Você que criou isso. Sem nome definido: morena, corpo atlético. A principal característica é o positivismo, externado através da palavra “ótimo” em diversas situações.

— Você não deveria ler isso.

— Estava aqui em cima da mesa.

— Quantos anos você tem?

— Me pergunte amanhã, na praça.

— Isso nunca vai acontecer.

— Por quê?

— Vou rasgar essas folhas...

— Por quê?

— Você nunca olhou pra mim antes de eu escrever que...

(pra inaugurar as postagens, nada melhor que um conto muito antigo em forma de diálogo na madrugada)

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