— O que é essa falha na sua barba?
— É uma falha, ué.
— Mas é muito grande...
— Diga algo que eu não sei.
— Não te incomoda?
— A idéia é que me incomode... É meu principal defeito... Mas isso é bom!
— Como pode ser bom?
— Faz com que eu não repare no resto, nos outros defeitos... Não me sinto tão feio.
— Você é bonito!
— Não...
— Me dá um cigarro.
— Você não devia fumar.
— Olha quem fala...
— Eu fumo pra esquecer essa falha na minha barba. Esse defeito irremediável e inexplicável.
— Mas você é tão bonito.
— Eu estou ficando velho, me sinto com mais de trinta anos.
— Você tem trinta e dois, não é?
— É, mas eu sempre me sinto uns cinco anos mais novo.
— Que ridículo isso.
— Você poderia parar de me encher um pouco.
— Você poderia me beijar logo...
— Você não deveria querer me beijar.
— E você deveria querer fazer amor comigo agora.
— Ah, coloque um disco pra tocar e cale um pouco a boca.
— Você não quer trepar?
— Você não deveria querer trepar comigo.
— Mas eu quero.
— Não quer, eu apenas estou escrevendo isso. É uma vontade minha que eu coloco no papel, mas você não quer.
— Então está dando certo, pois estou muito excitada e com vontade de fumar.
— Não, eu que quero que você fume e tire a roupa para mim, você nunca teve nem nunca vai ter vontade de dar pra mim.
— Mas eu estou aqui, não estou?
— Não, claro que não.
— Onde eu estou?
— Está sentada num banco de praça, lendo uma revista.
— E você?
— Eu estou aqui, no meu escritório, passando a mão na falha da minha barba.
— Você me conhece?
— Nos já nos vimos algumas vezes, sempre na hora do almoço.
— Naquele restaurante na esquina da Inácio Pereira da Rocha com uma rua que não lembro o nome.
— É, eu sempre almoço lá.
— Eu sei.
— E depois vou até a pracinha em frente à Fnac...
— E senta num daqueles bancos, pra ler alguma coisa. Pode ser um livro, uma revista... É onde está agora.
— É, como você sabe tudo isso.
— Eu te vejo no restaurante e às vezes na pracinha. Às vezes nos dois lugares, eu ando sempre por ali.
— Você me segue?
— Não, quer dizer, às vezes você me guia durante a digestão...
— Eu acho que já te vi, não sei onde...
— É, nunca reparou de verdade em mim...
— Mas você vai me comer ou não?
— Ainda não sei, não é assim que se decide o desfecho de uma história...
— Mas você me deixou com tesão. E eu acho essa falha na barba a coisa mais sexy que já vi.
— Que tal se eu te comer na última página?
— Quantas faltam?
— Umas cem no mínimo.
— Que merda! O que tem antes disso?
— Enrolação... Um pouco de suspense, crises existências e tal...
— E você vai me comer só na última página?
— É uma questão de narrativa isso. Nós ainda não nos conhecemos. Um dia eu vou trombar em você ou puxar papo no banco da praça.
— E por que não faz isso logo?
— Sei lá, seria sem graça. Não acha que merecemos uma história mais complexa?
— Se o sexo for bom, o que importa a história?
— Sei lá... Eu acho que...
— Você acha coisas de mais.
— É...
— Eu vou te esperar amanhã, na praça, OK?
— E o que eu faço com todo o resto? Já escrevi muita coisa até chegar nesse ponto? O tesão que eu escrevi e sua vontade de fumar estão aqui no texto.
— Então me coma! Você criou esse tesão, só falta me foder.
— Eu nem sei seu nome...
— Então invente logo algum nome pra mim. Que tal Raquel?
— Você tem cara de Joana, acho.
— Ótimo.
— Estou obcecado por você.
— Ótimo.
— Vou jogar tudo fora...
— Ótimo.
— Que mania é essa agora?
— Você que criou isso. Sem nome definido: morena, corpo atlético. A principal característica é o positivismo, externado através da palavra “ótimo” em diversas situações.
— Você não deveria ler isso.
— Estava aqui em cima da mesa.
— Quantos anos você tem?
— Me pergunte amanhã, na praça.
— Isso nunca vai acontecer.
— Por quê?
— Vou rasgar essas folhas...
— Por quê?
— Você nunca olhou pra mim antes de eu escrever que...
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