22 de jul. de 2010

inverno

Júlia entra no bar que mais parece um restaurante. De longe não posso ver direito seu rosto, mas a maneira como se esquiva das mesas e pessoas é inconfundível. Não há muita luz no ambiente. Ao meu lado pessoas conversam sobre essências, mas não há nada no ar além de fumaça de cigarro. Dou uma bicada no uísque e uma estranha sensação se desenvolve em mim. De repente, preciso tirar a malha de lã que me sufoca os sentimentos. Júlia está contornando pessoas em minha direção. “No inverno os cheiros ficam mais acentuados”, escuto enquanto tento cadenciar novamente a respiração.

Uma rajada de frio gela meu corpo desprotegido. Ela parece demorar mais do que o habitual para transpor a barreira de mesas que nos separam. A palpitação parece tentar me dizer algo. A ansiedade me enjoa. Olho ao redor e evito acompanhá-la com o olhar. Fito garotas bem vestidas e os recháuds flamejantes que enfeitam suas mesas. Quase todos vestem calças jeans. Só as pontas de meus pés tocam o chão por debaixo da cadeira e me controlo para que não tremam.

A mão quente de Júlia toca o ombro e levanto-me num milésimo para abraçá-la. Grudamos nossos corpos e meto a cara em seu cachecol ao procurar sua nuca. Sorrimos meio envergonhados. Afasto-me para olhá-la com mais precisão. Não há muita luz no ambiente, mas sua pele morena brilha no mesmo instante em que coloca as mãos nos bolsos do sobretudo bege. “Você não está com frio”, diz com certa estranheza. Finjo que não e sentamos ao mesmo tempo. Começamos em silêncio. Penso perguntar por que ela cortou a barra da calça jeans assim, mas não o faço. “Uma soda diet, por favor”. Não gosto quando usa dourado... Acho que o prata se ajusta aos seus cabelos negros ondulados. “OK, vou por a blusa, não quero que sinta aflição”.

Pego em sua mão que agora está fria por causa do copo com gelo. “Júlia...”, começo, “...Você sabia que o Chanel Nº 5 usa uma secreção retirada dos testículos de gatos selvagens como fixador?”. Ela ri e fica um pouco mais à vontade e pensa como eu sei esse tipo de coisa. A bebida de meu copo acaba e espero o garçom para conseguir um refil. Escuto mais uma vez por que me deixou. Num pequeno palco uma voz feminina surge entoando versos em português. Talvez uma música de Cássia Eller ou ainda de Marina Lima. Olhos marejados e garganta seca.

Júlia deixa o pescoço à mostra e posso ver o topo de seu colo. “As fragrâncias influenciam diretamente na motivação emocional de cada um”. O seu perfume atravessa a mesa e desencadeia um doloroso processo de abstinência. Queria repudiar seu odor, mas sou tão viciado quanto um político que ama o poder. Miro em seu olhar culpado e desgostoso. Mais uma vez sorrio nervosamente. Não sei o que lhe dizer ou como me expressar. Podia lhe ofertar um buquê de rosas brancas ou gérberas vermelhas, mas de que adiantaria? Prefiro não chorar e apenas insisto em perguntar. Não há desprezo ou melancolia. Certamente seremos amigos e nunca mais cozinharemos um para o outro.

Levantamos e agora tudo perde o sentido. Os significados daqueles cheiros nunca mais serão sinônimos de alegria e gozos viscerais. Serão sobras de uma longínqua e confusa história que acaba em meio a vinhos tintos e fondues de queijo; resquícios de uma noite mal acabada entre cigarros e lavagens estriadas em calças de estranhos; uma triste certeza de que estaremos sempre condicionados a lembrar de um encontro perfumado de dor. Ela sabe que é melhor ir embora e eu não digo nada.

Prefiro não lhe falar tchau e apenas meto a cabeça entre as mãos e fico só com o aroma invisível ao meu redor. Bebo mais um uísque, que me invade pelas narinas, e me livro da blusa antes de ir embora. Penso chamar um táxi, mas a madrugada oferece uma solitária calçada. Ao caminhar o frio congela minhas orelhas e resseca o meu nariz por dentro. Sorrio com verdade pela primeira vez em alguns dias. Livre de florais, cítricas ou amadeiradas sensações de mal-estar.

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